sábado, 26 de novembro de 2011

A condenação perpétua de Gunaz (tudo pelo irracional)

A nossa colega defensora Bianca Cobucci (DF) nos envia a seguinte história, ocorrida recentemente, a qual segue resumida e comentada:


Em Cabul, Gunaz teve relações sexuais com o cunhado. Na verdade, a jovem afegã alega que foi estuprada, violentada. Assim como uma parte considerável das vítimas de estupro, Gunaz preferiu ocultar a violência. No entanto, a gravidez lhe obrigou a revelar à família.

Por isso, foi denunciada e condenada por adultério à pena de 12 anos prisão. Depois de dois anos do nascimento de sua filha, Gunaz, para ver extinta a sua punibilidade, resolveu casar-se com o seu agressor e recuperar a sua honra, a sua liberdade e permitir que a sua filha fosse aceita socialmente.

Formalidades cumpridas, um Tribunal afegão decidiu somente reduzir a pena para 3 anos de prisão, sob o argumento de que Gunaz demorou a comunicar a violência a que foi submetida. Os meses que Gunaz escondeu o delito teriam afastado a possibilidade de se comprovar materialmente o estupro.

Esse é um caso exemplar de que o direito penal não resolve conflitos. Mais interessante ainda se torna quando podemos distinguir com clareza os malefícios da mistura entre a moral e o direito (penal).

Ora, mesmo se considerássemos que Gunaz teve relações sexuais com seu cunhado de forma consensual, esse deveria ser um problema a ser resolvido na (e somente) esfera privada. Em nada o direito pode resolver essa questão, bem como inúmeros outros comportamentos desviantes, que circunscrevem-se em um círculo familiar.

Gunaz vai permanecer eternamente condenada. Condenada por ter sido estuprada (o que na dúvida foi reclassificado para adultério). Condenada a ter que explicar, esconder, disfarçar, etc., a delicada situação para a sua filha (nascida de uma violência); condenada a ser submetida e subjugada sexualmente, agora de forma legítima por seu estuprador; condenada, portanto, pelo direito que impõe regras opressivas, revelando a barbárie do poder (com todas as suas implicâncias morais).

Todavia, caro leitor, este não é apenas um drama isolado em um pais exótico e distante da nossa realidade. No Brasil, quantas "Gunazes" não foram obrigadas a se casar com os seus estupradores, forçadas pelas pudicas famílias, para que a punibilidade do agressor fosse extinta, conforme previa o inciso VII do artigo 107 do Código Penal (dispositivo revogado no século XXI pela Lei 11106/05)? Evitando, assim, que  a vergonha (?!) da gravidez não contaminasse a sociedade, dentre outras considerações morais. Só para lembrar, o adultério também deixou formalmente de ser crime no Brasil também em pleno século XXI (mesma lei).

Quantos dramas não se desenharam em razão dessa irracionalidade? Quantas infelicidades foram perpetuadas por toda uma vida em nome da aparência social? Quantas tristes histórias poderíamos contar revelando inúmeras tragédias impostas pelo direito penal? Creio que ninguém tem dúvidas de que o casamento, visando a extinção de punibilidade, também era uma forma de se apenar a vítima de estupro, parte mais vulnerável de toda essa relação. Resolve-se uma situação à custa de imposição de mais sofrimento.

É inimaginável a violência a que é submetida uma mulher estuprada que tem que se casar (civilmente) com o agressor para legitimar a sua prole perante uma sociedade moralista, que se utiliza do direito penal (poderíamos dizer da força) para impor os seus valores, coagir os desejos (muitas vezes enrustidos) e punir os infratores.

Pobre Gunaz. Pobres brasileiras, vítimas da história e do exemplo deletério do direito penal.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A hipocrisia do dia-a-dia


Para iniciar esse blog, que tem por objetivo difundir a discussão sobre o que existe por trás do sistema legal, especialmente por sua vertente mais violenta (o direito penal), chamo a atenção para o fato de que diuturnamente, sem outras indagações, nos encontramos em um processo de repetição dogmática (muitas vezes inconsciente), sem nos atentar para as graves consequências da legitimação do sistema, na forma como está posto.

Durante a crise que assolou o planeta em 2008 comecei a ouvir notícias de aportes de recursos ao sistema financeiro internacional que em muito superavam a casa do trilhão de dólares. Confesso que se tratava de valores que nunca imaginei existirem ou haver algum tipo de disponibilidade possível e, na época, indaguei quantos problemas poderíamos resolver com a aplicação social daqueles recursos.

Me encontrei, então, um pouco (imagino) como Marx e Engels, crescendo em um mundo de capitalismo selvagem pós-absolutismo, onde tudo era possível desde que se preservasse o livre-arbítrio, deixando ao Estado apenas a obrigação de manter a segurança, o que se tornou extremamente oportuno para o empresariado emergente.

Pois é. Com o tempo, a idéia liberal do capital selvagem se reorganizou, desenhou um modelo social-democrático, mas não se livrou do espectro da barbárie. Convivemos com a exploração predatória das reservas minerais, a água já é considerada um bem escasso, o meio ambiente é degradado sem pudor, a ciência se ajoelha de forma espúria para a finalidade capitalista, produzindo o que tem de pior desde a revolução industrial.

Basta atentarmos para as práticas impostas pela indústria farmacêutica, que sonega a possibilidade de ajudar humanos em situação de risco, em razão da sua política de capital, impondo preços absolutamente inviáveis ou realizando experiências com inocentes, enquanto muitos morrem sem a devida atenção médica (mas tudo isso parece não fugir da normalidade).

Na verdade, em nome dos interesses comerciais, sempre seguindo a lógica da acumulação do capital nas mãos de poucos, encontramos o direito protegendo patentes, ou seja, protegendo o direito de explorar o próximo, mesmo quando o próximo não tenha condições econômicas de adquirir o medicamento, diante de um grave risco à sua saúde. Quando muito, inicia-se um jogo exploratório com o Estado (valendo-se de argumento assistencialistas) exigindo-se milhares de reais por uma caixa de medicamento suficiente para apenas um cidadão, o que acaba gerando inúmeros outros conflitos, especialmente entre as hordas de necessitados em face da contingência orçamentária.

Em outras palavras, é o direito corrigindo a injustiça para com aqueles (e somente com aqueles) que podem ditar o direito. O direito não serve à humanidade, mas somente à dominação e à exploração econômica (triste constatação!).

Encontramos Estados pseudo autônomos em rodadas e rodadas diplomáticas não para evitar que mortes ocorram por falta de medicamento, mas para somente proteger os interesses comerciais das indústrias farmacêuticas. Daí você pode perguntar: e o direito à propriedade e à pesquisa e os recursos  empreendidos neste ou naquele medicamento? Só me vem uma resposta: estamos colocando tudo isso acima da vida, que, dependendo do discurso, de onde você se situa nesta distribuição de bens, talvez não tenha mesmo uma importância tão grande assim.

Foram os capitalistas emergentes pós-absolutismo que fizeram constar na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que a propriedade era, ao lado da liberdade, da segurança e da resistência à opressão, um direito natural. Com isso, toda a legislação positiva que veio em consequência nos fez repetir o discurso de proteção da propriedade com mais veemência do que protegemos a vida.

Pois bem, se Marx e Engels retornassem agora à vida (mais de um século depois) e soubessem que o capital injetado somente pelos Estados Unidos para salvar o falido sistema financeiro em 2008 e 2009 era mais que suficiente para acabar com toda a fome de um continente como o africano (por várias gerações), certamente já estariam, por essa altura, pedindo para sair deste planeta insano.

Por isso, você aí, caro leitor, não se conforme nunca com o estado das coisas, não lute por uma ideologia vazia, não acredite em fórmulas prontas, não espere um messias fazer a sua parte. Não há nenhuma solução viável com o direito (o direito penal deve ser apenas um sistema de garantias do cidadão contra o Estado e não o contrário), não se deixe enganar com tanta facilidade. Temos que nos reprogramar como humanos para que a palavra dignidade possa fazer algum sentido.

Deveríamos, envergonhados, colocar a mão na consciência e admitir que  enquanto milhares de crianças chegam ao nosso planeta em um ambiente de fome, morte, miséria e exclusão, apesar de todo o avanço tecnológico que experimentamos, nos transformamos em seres indiferentes, discutimos regras jurídicas, impondo valores ou exigindo condutas diversas nestas circunstâncias.

Apesar de vivermos em sociedade, individualizamos a responsabilidade penal e nos foi identificado (apresentado) o culpado pelas nossas mazelas. Certamente não são os proprietários dos grandes laboratórios (que não tem rostos, que foram diluídos pelo direito acionário), mas o errante, sem educação, desde cedo selecionado para vestir essa carapuça, que entra e sai do sistema via de regra por um crime burdo, subtraindo iogurtes, chinelos ou consumindo drogas ilícitas (aquelas ainda não comercializadas pelos grandes laboratórios).

Acordamos em um mundo hipócrita e não sabemos bem o que fazer com ele. Vamos parar de reproduzir essa insanidade (do mundo dos efeitos e não das causas) e deixar apenas o bom senso como referência.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A palavra da vítima!

Com a crescente aceitação unicamente da palavra da vitima (inclusive pelo STJ) em crimes de diversas espécies, estamos vivendo a era da inversão do ônus da prova penal, passando definitivamente a considerar culpado quem não provar a sua inocência.

Evidentemente, que isto se torna relativo a medida que subimos a escala social do criminalizado, sob argumentos diversos, sendo o mais comum a complexidade dos fatos (?!!).

Assim, se algum dos preceptores desta (simplória) corrente for sujeitado a palavra de vitima mal-intencionada, já tem ancorado o seu salvo-conduto (trata-se de caso complexo).

Enquanto isso, a roda da justiça gira, produzindo os seus deletérios efeitos!!!