Em Cabul, Gunaz teve relações sexuais com o cunhado. Na verdade, a jovem afegã alega que foi estuprada, violentada. Assim como uma parte considerável das vítimas de estupro, Gunaz preferiu ocultar a violência. No entanto, a gravidez lhe obrigou a revelar à família.
Por isso, foi denunciada e condenada por adultério à pena de 12 anos prisão. Depois de dois anos do nascimento de sua filha, Gunaz, para ver extinta a sua punibilidade, resolveu casar-se com o seu agressor e recuperar a sua honra, a sua liberdade e permitir que a sua filha fosse aceita socialmente.
Formalidades cumpridas, um Tribunal afegão decidiu somente reduzir a pena para 3 anos de prisão, sob o argumento de que Gunaz demorou a comunicar a violência a que foi submetida. Os meses que Gunaz escondeu o delito teriam afastado a possibilidade de se comprovar materialmente o estupro.
Esse é um caso exemplar de que o direito penal não resolve conflitos. Mais interessante ainda se torna quando podemos distinguir com clareza os malefícios da mistura entre a moral e o direito (penal).
Ora, mesmo se considerássemos que Gunaz teve relações sexuais com seu cunhado de forma consensual, esse deveria ser um problema a ser resolvido na (e somente) esfera privada. Em nada o direito pode resolver essa questão, bem como inúmeros outros comportamentos desviantes, que circunscrevem-se em um círculo familiar.
Gunaz vai permanecer eternamente condenada. Condenada por ter sido estuprada (o que na dúvida foi reclassificado para adultério). Condenada a ter que explicar, esconder, disfarçar, etc., a delicada situação para a sua filha (nascida de uma violência); condenada a ser submetida e subjugada sexualmente, agora de forma legítima por seu estuprador; condenada, portanto, pelo direito que impõe regras opressivas, revelando a barbárie do poder (com todas as suas implicâncias morais).
Todavia, caro leitor, este não é apenas um drama isolado em um pais exótico e distante da nossa realidade. No Brasil, quantas "Gunazes" não foram obrigadas a se casar com os seus estupradores, forçadas pelas pudicas famílias, para que a punibilidade do agressor fosse extinta, conforme previa o inciso VII do artigo 107 do Código Penal (dispositivo revogado no século XXI pela Lei 11106/05)? Evitando, assim, que a vergonha (?!) da gravidez não contaminasse a sociedade, dentre outras considerações morais. Só para lembrar, o adultério também deixou formalmente de ser crime no Brasil também em pleno século XXI (mesma lei).
Quantos dramas não se desenharam em razão dessa irracionalidade? Quantas infelicidades foram perpetuadas por toda uma vida em nome da aparência social? Quantas tristes histórias poderíamos contar revelando inúmeras tragédias impostas pelo direito penal? Creio que ninguém tem dúvidas de que o casamento, visando a extinção de punibilidade, também era uma forma de se apenar a vítima de estupro, parte mais vulnerável de toda essa relação. Resolve-se uma situação à custa de imposição de mais sofrimento.
É inimaginável a violência a que é submetida uma mulher estuprada que tem que se casar (civilmente) com o agressor para legitimar a sua prole perante uma sociedade moralista, que se utiliza do direito penal (poderíamos dizer da força) para impor os seus valores, coagir os desejos (muitas vezes enrustidos) e punir os infratores.
Pobre Gunaz. Pobres brasileiras, vítimas da história e do exemplo deletério do direito penal.