domingo, 4 de dezembro de 2011

O esbulho do tempo (e da prescrição)


O tempo é um fato natural de enorme relevância jurídica. Mais do que isso, o tempo é o "compositor de destinos", o "tambor de todos os ritmos", que de forma inexorável produz seus efeitos sobre todos nós, em todos os nossos momentos, compondo todos os nossos sentidos. Não há nada que não esteja circundado pelo tempo. O máximo que podemos fazer é entrar em um "acordo" com ele para administrar seu resultado absoluto.

Depois de tantos anos (tempo) vivendo sob o arbítrio, encontramos na lei uma maneira  previsível de nos protegermos da insegurança. Portanto, a lei foi uma conquista contra o absolutismo, contra a discricionariedade de dizer o que é certo ou errado limitada à vontade de alguém. Com o tempo passamos a confundir a lei com a justiça, mas isso fica para outra história.

O certo é que a lei é ainda um porto seguro onde podemos ancorar. É uma referência mais razoável, embora a história registre a sua utilização para a opressão e o fato de ter por fundamento uma autoridade mística. Mas o tempo (o passar do tempo) incomoda, faz ruir muros, derruba leis nefastas, afasta arbítrios, inspira revoluções, oportunizando renascerem idéias e leis mais humanistas até o próximo revés. É a Roda de Sansara girando, distribuindo os seus fluxos e produzindo seus efeitos de forma persistente.

A existência do direito penal é a garantia. Ele protege ou garante o cidadão contra a potestade do Estado, impondo, por exemplo, um prazo (um tempo) para punir ou executar uma pena em caso de conduta desviante, apurada também dentro de um sistema de garantias previamente estabelecidas. A prescrição (forma de aquisição ou de extinção de um direito) é um instituto de garantia do cidadão também contra o Estado, por isso, uma causa extintiva da punibilidade. Assim, a própria lei determina que "violado o direito, nasce para o titular a pretensão, que se extingue com a prescrição" (art. 189 do Código Civil). Portanto, salvo exceções, o direito nasce com prazo para ser exercido.

Isso ocorre no direito penal. Como um sistema de garantia, não é razoável que o direito nascido para o Estado fosse indeterminadamente colocada à sua disposição, sem que o seu não exercício não acarretasse nenhuma consequência jurídica. Ao cidadão foi então garantido um prazo para ser punido ou ter a sua pena executada. A prescrição nasce envolvida pelo tempo e como fundamento do garantismo.

A questão é como definir o tempo suficiente para a aquisição ou extinção de direitos. Ou ainda o seu termo inicial: vamos contar esse tempo a partir do que? Estabelecido um acordo, temos que formalizar o tempo na única ferramenta de que dispomos: a lei. Para tanto, o Código Penal (instrumento garantista) define no seu artigo 112, I, que a prescrição começa a correr do dia em que transita em julgado a sentença condenatória para a acusação.  Pronto, previsão direta e simples, estabelecido o termo inicial começa a correr o tempo para o exercício potestativo do direito do Estado.

Entretanto, até pouco tempo não havia nenhum questionamento sobre esse dispositivo legal, até porque como em raras vezes a lei conseguiu se livrar de elementos valorativos (expressões avaliatórias) e se concentrou na questão descritiva, objetivando o seu comando normativo. Não foi o bastante. Sob o argumento de que ao Estado não pode dar início a execução da pena sem que haja uma condenação definitiva, o prazo prescricional deveria ter o seu termo inicial quando do trânsito em julgado para ambas as partes (Estado e cidadão).

Deste modo, com base em argumentos (princípios) garantistas (explicitamente evocados) como a presunção de inocência ou da igualdade, considera-se que o artigo 112, I, do Código Penal não foi recepcionado pela Constituição de 1988, devendo o tempo ser redimensionado para efeito da prescrição.

Com esse entendimento, afasta-se uma lei formalmente aprovada e que contém uma garantia ao cidadão. O mais interessante ainda é que o STJ e alguns outros tribunais têm declarado o afastamento desta lei em julgamento por órgãos fracionários, em afronta à cláusula de reserva de plenário (art. 97 da Constituição) ou, ainda, ao que dispõe explicitamente a Súmula Vinculante nº 10 do STF.

Quem adota esse entendimento está se esquecendo que recentemente, ou seja, após a Constituição de 1988 e da massificação do entendimento adotado pelo STF sobre o principio da presunção de inocência, o legislador penal alterou o instituto da prescrição (artigos 109 e 110 do Código Penal) pela Lei nº 12.234, de 05 de maio de 2010, e não cogitou, em nenhum momento, de alterar o artigo 112, em especial o seu inciso I.

Com efeito, isso transparece que a idéia do julgador está inconformada com o legislador. Este, representante eleito pelo cidadão, arbitrou um consenso sob o tempo e as suas consequencias jurídicas. Aquele, constatando que o tempo passa além do gostaria (ou poderia) propõe a idéia de se refazer uma leitura do dispositivo legal, conformando com as suas expectativas. É o Estado se contrapondo ao próprio Estado, a maré no embate com o rochedo, onde as perdas ficam apenas na conta do pobre mexilhão (cidadão).

Ademais, é sempre bom lembrar que não existe igualdade entre cidadão e Estado. Isso é uma ingenuidade. Nietzsche considerava  o Estado o "mais frio entre os monstros frios". O Estado é inatingível, inalcançável, uma abstração que se perpetua em inúmeras fórmulas, que substitui com competência o soberano e que oprime por uma engenharia ficcional.  Não tem rosto, não tem voz, mas o seu espectro é onipresente e produz diuturnamente significativas mudanças  na vida de cada um.

Não tem como o Estado ser igual ao cidadão, da mesma forma que não há igualdade entre a defesa (mesmo a pública) e a acusação (estatal), que conta com todos os recursos e ainda é reforçada pelo empresariado moral cuspindo regras comportamentais e arrotando o pior para pautar os incautos. No fim, com a inversão dos valores, o que se pretende mesmo é esbulhar (apropriar-se) da prescrição (do tempo) e torná-la subserviente ao suserano.

Não pensar o direito penal como garantia é puro arbítrio. Utilizar-se de argumentos garantistas para assegurar a vindita do Leviatã é indefensável.

Por fim, definitivamente o "tempo não para". Mas, por ser tão inventivo, o tempo "é um dos deuses mais lindos". Que então seja "ainda mais vivo no som do meu estribilho".